Texto por Fernanda Aoki.
Tenho ficado muito incomodada com essa tal de história de felicidade individual. O que é essa tal de felicidade que todos buscam? E o que quer dizer esse imperativo de que você tem que conquistar sozinho sua felicidade? A hora que juntam os dois enigmas, parece que há uma total confusão; e o pior de tudo, é que são palavras e conceitos tão cotidianos que nem sequer os indagamos...
Gosto de uma história de uma mãe que pergunta para seu filho pequeno: Filho você é feliz... E ele responde, não mamãe, eu sou o Dunga- fazendo menção aos sete anões.
Esse pequenino nos ensina que talvez sete anões seja muito mais parte da nossa história, do que o tal conceito de felicidade. Não se nasce sabendo o que é felicidade, passa-se uma vida buscando algo que não se sabe ao certo, mas se diz que o objetivo de estar vivo é encontrá-la e morre-se entristecido por não ter alcançado a grande busca... Mas que busca é essa? Em coro se responde “ser feliz”, como se fosse simples como ser um dos sete anões...
Muitos tentam defini-la desde a antiguidade, não quero ser mais uma a tarifar a busca... Proponho o estado instigado por Bion: um facho de intensa escuridão, para talvez podermos desenvolver a condição mais verdadeira do homem que é o "não saber"... Não, não é um facho de luz na escuridão, pois o facho de luz limita a visão àquilo que se quer ver. Um facho de intensa escuridão é perceber-se esvaziado, e ao mesmo tempo aberto às infinitas possibilidades que habitam o desconhecido. Feito um pacote de presente que pode ser tantas coisas, mas ao abrir restringe-se à algo que nomeamos como talvez: blusa, lanterna, cachecol, caneta... Existe porém algo que fica antes e depois do embrulho, essa é a essência do presente: O PRESENTE, gesto de querer partilhar o bom com alguém, deixar um pedaço de si com o outro, re-presentar-se em objeto-ação para também ser da e com a pessoa. E essa essência presente, geralmente, é esquecida assim que se abre o pacote e torna o que se ganhou posse-individual, des-presente.
Acho que assim temos feito com a felicidade, jogamos ela fora com o embrulho, nomeamos restringimos damos meta, tempo, lugar; felicidade é a viagem para Disney, felicidade é o bônus no fim do mês, felicidade é ser pedida em casamento, felicidade é ter tal pessoa, felicidade é ser promovido... Tudo isso pode mesmo morar no baú da felicidade, porém quando ele é aberto se dissipa feito a caixa de Pandora. E aí, já deixa de ser felicidade e vira conquista individual, e parte-se então para nova busca de “objetos” para habitarem a saga da felicidade.
Afinal se a busca acaba para que vivemos se este é justamente o objetivo da vida?
Por isso abrir o baú da felicidade é o que tanto almejamos e tanto tememos... Encontrar é morrer. Encontrar é feito des-presente, des-felicidade, des-embrulho.
Caímos então mais uma vez na escuridão...
Mas e aí, quer dizer que não podemos ser felizes? Não devemos abrir o baú? Não devemos conquistar?
É curioso como só enxergamos o escuro como ausência de luz, e só conseguimos pensar em alternativas como opostos... E com muito medo desse escuro, buscamos o controle. E desde muito cedo aprendemos que controlar é não precisar; Controlar é NÃO depender.
E em nome da posse da felicidade, ou des-felicidade levanta-se a bandeira que diz você precisa ser feliz sozinho, porque só assim a felicidade estará sob seu controle. O presente será seu.
Me dá um aperto no coração só de pensar na condenação dessa sentença, como a de Tântalo que morto de fome e sede, experimentava o rio subir e quando ia beber, o rio descia, e quando ia comer a comida se afastava, como se estivéssemos condenados a uma eterna insatisfação, uma vez que individualismo é justamente a impossibilidade de SER feliz.
Ser possuidor da felicidade faz-nos então Tântalos, fadados ao desencontro. Ser sozinho é des-encontrar.
Você já morreu de rir, de doer a barriga, sozinho? Você já chorou de emoção sozinho? Você já se sentiu importante sozinho? Teus melhores momentos foram sozinhos? Você já fez cócegas em você mesmo? As cócegas, corporalmente só funcionam com interlocutores, lição do corpo dizendo da necessidade de alguns de nossos botões, sintomas de felicidade, que só ativam se tocados por outros.
Não enxergamos a nós mesmos, nossos olhos estão posicionados para espelharmos os outros, não conseguimos beijar nossa própria boca, nem se auto-fecundar...
Essa tal história de felicidade individual, nos escraviza a uma solidão de nos reduzirmos a nossa parte não humana, já que todo humano só pôde ser desenvolvido a partir de outro humano, de forma que somos constituídos pela relação. Negá-la é, portanto, condenar-se a estagnação.
Narciso vidrado pela tal de “felicidade individual” matou-se definhando em seu espelho; ele negou o amor de eco, deusa que tinha a potência de devolver narciso a ele mesmo; mas Narciso escolheu a “felicidade individual” e sucumbiu na imagem-lago estática, previsível, controlada.
Tem coisa mais preciosa do que ser devolvido a si mesmo como se é, através de olhos presentes? Eis aí o frio na barriga do encontro... “Quando a luz dos olhos meus com a luz dos olhos teus resolvem se encontrar, ai meu Deus me sinto incendiar”...
O encontro é que ilumina nossa escuridão, que incendeia quem somos, dando-nos de presente a nós mesmos através do outro.
Acredito que encontros verdadeiros são aqueles que mergulhamos em partes inéditas do outro e de nós e voltamos ainda maiores...
Felicidade é da ordem dos deuses, é como a inspiração, a criação, não se pode ser possuidor dela, você é simplesmente possuído por ela. E esse estado de possessão acontece, não está em mim, ou no outro, mas no interstício desses, é justamente no encontro, onde vivemos o mais divino em nós, a condição de reciprocidade, mais que de dependência, de nos re-conhecermos e transformarmos quem somos...
Mathew Ricard o homem considerado mais feliz do mundo pela ciência quando mediram seus impulsos cerebrais pensava em COMPAIXÃO, condição de nos encontrarmos na humanidade do outros, nos fazermos um e experimentarmos sua dimensão. Encontro divino de humanidades.
Há um tempo já acreditei que felicidade era ser escritora, ganhar muito dinheiro, morar num apartamento de frente para o mar... Pensava isso porque desconhecia o estado de possessão da felicidade. E de repente, a vida mais uma vez me deu uma lição. Mas lição da vida não é feito de lousa e cartilha, estruturada, ela se dá no " de repente" quando nos colocamos em estado de aprendiz e descoberta. Essa lição me aconteceu no meio do caminho e pude perceber que quando me sentia amada encontrada em minha maior profundidade, quando encontrava um outro olhar e já era outra, e quando podia eu ser esses olhos-casa e abrigar alguém, entendia ali no banco a beira da praia, tomando agua de coco e falando da vida, fazendo meus braços asas ao correr como e com uma criança, dançando de rosto colado em cima do sofá da sala, ou na sarjeta da calçada dividindo um pão quentinho e encontrando com a vida em olhos dispostos a encontrar, que felicidade é assim... te pega de sopetão se você estiver aberto a ser possuído por ela.
A nossa tarefa assim é buscarmos manter a condição de receber a visita da felicidade. Quando estabelecemos a máxima de que temos que ser felizes sozinhos, a felicidade, passa adiante para a próxima casa, pois se é sozinho, ela já não é bem vinda- está dito que não cabe mais um, nem ela, que é o terceiro que surge do encontro de almas, que nos fazem ainda mais nós mesmos.
Felicidade nos encontra no encontro, e ela habita em nós pela memória de nossa capacidade mais humana que como o presente vem antes e depois do embrulho: re-editarmos a nós e a vida através dos maiores laços que nos fazem e nos lembram humanos- re-LAÇÕES.
Fernanda Aoki
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