Texto por Fernanda Aoki.
Era um entardecer que não tinha sol, sabíamos que era hora dele se pôr, sabíamos que ele estava lá, mas não se via...
Era uma fé, crer sem ver, que não nos fazia fiéis...
Ninguém pensava no sol atrás do nublado e do chuvisco, não precisava acreditar na sua existência, era entardecer com ou sem sol...
A correria do fim do dia era tanta que perceber o pôr do sol na ausência dele era algo quase absurdo, devaneio para o ócio atento...
E assim, estava eu olhando o cair da tarde na janela em meio aos pingos de chuva do lado de fora.
Eis que surgiu um bando de urubus que celebravam em ritual a fé no sol que se despedia...
Não era uma revoada de urubus, embora fossem muitos, pois não tinham pressa, não batiam as asas em exercício, nem voavam em retirada com uma rota certa... Mas ao contrário, os urubus fiéis plainavam e iam calmamente para algum lugar, provavelmente também iam para seu poente, seu ninho...
E como bons fiéis também criam que tinham logo ali um ninho, um lugar seu para descansarem; quer dizer, repousarem, pois eles não pareciam cansados, terminavam o dia em ritmo de quem cumpriu sua missão, despediam-se degustando cada minuto final, como quem saboreia algo que nunca mais voltará... Aquele dia ia se consumindo para sempre...
E as asas dos urubus passeavam pelo ar, ora subiam, ora desciam, sem qualquer bater das asas...
Eles sim aprenderam a marchinha de carnaval “deixa a vida me levar, vida leva eu”, sabiam aproveitar as correntes do vento a seu favor... E iam plainando como quem pode conhecer novos caminhos, traçando um vôo sem planos...
Não precisavam planejar, prever, calcular... Essas são pré-ocupações de quem não crê, daqueles que precisam apalpar o amanhã que não se materializa até que chegue... E os urubus sabiamente não buscavam adiantar um futuro que não se presentifica...
Eles, lá do alto, não se ultrapassavam acelerados, mas brincavam de se entrecruzarem com suas asas, que embora não batessem, impulsionando o vôo, inclinavam-se para mantê-lo...
Eles podiam brincar, ser criança ao entardecer e desfrutar do melhor gosto da vida – o encantar se com o faz-de-conta – o se divertir com a criação lúdica que se mantém pela esfera criada pelos brincantes...
O silêncio do vôo assim como do entardecer contrastava se com o barulho das buzinas daqueles que laááá embaixo aceleravam querendo voltar para casa, com tanta pressa e cansaço que nem se davam conta desse espetáculo no céu que sussurrava a felicidade tão perdidamente buscada pelos seres dos aceleradores lá de baixo, que faziam força, e cansados, deixavam o dia acabar; na verdade, desde o amanhecer torciam para que ele acabasse logo, sem se dar conta que também acabavam com ele... Ou melhor, antes do dia, pois este renasceria novinho, o homem não, o ser dos aceleradores acordaria um pouco mais velho e mais cansado...
Ah se os urubus pudessem gritar como as maritacas pedindo a
atenção dos aceleradores para ensinar a degustar a vida e voar com ela, sendo vivente e não sobrevivente como o ser dos aceleradores que tentam sempre estar sobre, ultrapassando o tempo, o outro e a vida...
Ah se os urubus pudessem contar o que aprenderam com a carniça, fazendo desse término-morte, alimento de cada dia...
Ah se eles pudessem ensinar a olhar para o alto e tirar os pés do chão, e poder brincar que nem criança, e celebrar o sol escondido...
Ah, mas se eles gritassem como as maritacas e falassem mais alto que as buzinas e os aceleradores... não seriam urubus e não poderiam escutar o sussurro do vento construindo seu caminho de despedida... Não seriam tão misteriosos e tão temidos – esses devoradores da morte que a ingerem, eternizando-a em cada minuto vivido... Eles não voariam tão alto, convidando os homens a olharem para cima, mudarem o foco, silenciarem e serem, no cume do dia, FIÉIS...
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